Temos mesmo de "olhar para cima"
As melhores obras de arte são, a meu ver, as que nos fazem colocar a vida em perspetiva. Aquelas que nos permitem sair de nós mesmos para percepcionar realidades mais abrangentes do que a que conseguimos processar. É isto que faz o filme "Don't Look Up", da Netflix (por muito pouco artístico que possa parecer o nome de uma multinacional citado neste contexto).
A trama mostra um cenário de absurdo que, por muito patético que pareça ao início, acaba por desarmar-nos com a sobriedade que transmite. É um retrato exacerbado da sociedade contemporânea que nos confronta com a nossa própria estupidez enquanto humanidade.
No filme um grupo de cientistas descobre que há um cometa gigantesco em rota de colisão com a Terra. Chocados com a descoberta, tentam alertar o mundo para a necessidade de agir, de fazer algo que possa impedir que toda a vida no planeta simplesmente desapareça. Apresentam cálculos e propôem soluções. Fazem aparições na televisão para falar sobre o assunto e alertam a presidente dos Estados Unidos da América (que outro país poderia liderar a luta pela sobrevivência da humanidade?).
Ao contrário do que pensavam, o seu alerta não é encarado com a seriedade que exige. A presidente (uma forma feminina de Donald Trump encarnada por Meryl Streep) desvaloriza o acontecimento, encarando-o como mais um trunfo para o necessário protagonismo pré-eleições. São feitos discursos hipócritas de missões de salvamento que envolvem um heroí de fachada, ao mesmo tempo que se deixa passar o precioso tempo para agir. Os cientistas desesperam perante a inércia. As pessoas desacreditam-nos. Surgem vídeos e teorias negacionistas que apresentam justificações alternativas para o facto de os cientistas quererem enganar toda a população. O melhor mesmo é nada fazer quanto à iminente destruição do mundo, pois é provavelmente mentira.
Achei particularmente deliciosa a forma como é retratado o impacto mediático do fim do namoro de uma das cantoras mais famosas (representada por Ariana Grande) na televisão generalista e de como os cientistas são convidados a aparecer numa espécie de nota de rodapé, no mesmo programa. É um pouco como as audiências do Big Brother em tempo de eleições.
Sem querer desvendar o resto do filme a quem não viu, posso apenas dizer que se seguem uma série de aventuras caricaturais que tanto dão para rir como para chorar. Perante um fim anunciado, a humanidade sucumbe ao caos, ao negacionismo, à estupidez ou à simples alienação. Coloca-se a hipótese de destruir o cometa e reúnem-se missões condenadas a falhar.
A epítome do absurdo surge quando um magnata da tecnologia - envolvido nas reuniões de Estado pela importância do seu patrocínio - sugere que o cometa não deve ser destruído para salvar a vida na Terra. Em vez disso, o melhor mesmo é deixá-lo vir, já que a sua composição é rica em metais e minerais preciosos que serão muito proveitosos para o sucesso da empresa megalómana. O cometa trará muitos empregos e riqueza para muitos milhões de pessoas. O facto de toda a vida na Terra vir a desaparecer com esta escolha não interessa pois, aparentemente, há uma empresa que vai lucrar com isso. A presidência dos Estados Unidos aprova a ideia e segue em frente o plano de não destruir o cometa.
A dada altura - quando é já demasiado tarde para evitar o Armageddon - vemos ainda a bipolarização da população: alguns olham para cima e, de facto, vêm o cometa com os seus próprios olhos. Outros escolhem não o fazer, seguindo aquilo que são apelos da presidente irresponsável e lunática que desacredita algo tão óbvio como um objeto incandescente a descer pelos céus.
Por muito absurda que esta história seja, é absolutamente certeira enquanto sátira do mundo em que vivemos. Mostra a rapidez com que se desacredita a ciência, com que proliferam opiniões não fundamentadas e negacionismo ridículo. Mostra ainda a irresponsabilidade dos governantes, a sua obediência aos magnatas da tecnologia e a forma como a loucura capitalista destes últimos leva que todos nós paguemos o preço. Algo tão simples como a observação dos céus torna-se a bandeira de uma ideologia ou de um modo de estar na sociedade. "Look Up" Vs "Don't Look Up".
Importa atentar na mensagem aqui patente porque este tipo de realidades absurdas estão a deixar de ser ficção.
Na última semana veio a público a notícia de que uma ponte histórica em Roterdão poderá ser desmontada para que um iate gigantesco possa ali passar. Este iate - presume-se - pertence ao não menos lunático Jeff Bezos, que há muito deu mostras de não conhecer limites para concretizar os maiores absurdos que a humanidade já conheceu. Na vida real, em pleno século XXI, um presidente de câmara está mesmo a considerar desmantelar um monumento nacional, reconstituído no pós-guerra, para que um barco de 127 metros possa ali passar. Estamos a falar de património público que será destruído - ainda que seja dito que depois a ponte será recolocada - para que um um luxo privado possa fazer o seu caminho rumo ao mar.
Se isto não é a epítome do absurdo não sei o que será. Até quando vamos escolher "não olhar para cima?" Até quando vamos escolher não nos importar e entretermo-nos com futilidades enquanto o destino coletico fica à mercê de caprichos lunáticos?