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IN.SO.LEN.TE

O aborto não se proíbe, só se criminaliza... e ainda há quem não perceba isto

No mês passado fez 15 anos que a interrupção voluntária da gravidez a pedido da mulher foi despenalizada. 

Em 2007, o segundo referendo feito em Portugal mostrou que a maioria dos portugueses e portuguesas concordava que não era justo julgar mulheres pelo “crime” de aborto. Apesar de tudo, o resultado foi bastante renhido (o “sim” ganhou com 59,25% dos votos, o “não” obteve 40,75%, mas a abstenção foi de 56,4%).

A publicação da lei nº16/2007 foi o culminar de décadas de luta e entraves colocados sistematicamente por grupos pró-vida, setores religiosos e responsáveis políticos (um deles o nosso atual presidente da República que, em 1998, acordou com o então primeiro-ministro e líder do PS, António Guterres, submeter a consulta popular uma proposta que tinha sido aprovada na Assembleia da República). Passei os últimos meses a investigar isto, e conto a história toda nesta reportagem do Gerador, onde reuni as declarações de alguns dos protagonistas envolvidos na luta pela despenalização.

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Foto: Protestos a favor do direito ao aborto nos EUA. Lusa

Importa sublinhar que o aborto era prática comum, mas só em 2007 passou a ser um direito. Note-se que, até esta altura, as mulheres podiam ser condenadas com uma pena até três anos de prisão por escolherem não ser mães. O aborto era legal apenas em casos de malformação do feto, violação ou risco para a saúde da mulher.

Desde que o aborto foi despenalizado em Portugal que, no geral, os números têm vindo a descer e isso fica patente quando se olha para os dados da Direção-Geral de Saúde.

Apesar disso, ainda há muito por fazer, já que o acesso à IVG no Sistema Nacional de Saúde continua a envolver problemas. Há muitas mulheres a relatar dificuldades em conseguir consultas – que, diz a lei, não devem exceder os 5 dias, a partir do momento em que são requeridas – necessidade de deslocações para fora da sua área de residência e reprovação por parte de profissionais de saúde. Sei isto porque falei com dezenas de mulheres (e reuni os dados num outro artigo, também ele publicado no Gerador).

Com tudo isto a acontecer – e, diga-se, a passar incólume – vemos surgir notícias absurdas, em que os médicos de família poderiam vir a ser avaliados pelo número de IVGs realizadas pelas suas utentes, sendo este um critério que poderia mesmo resultar em bonificação salarial. Ou seja, menos IVGs, mais dinheiro no fim do mês.

Felizmente, a ideia (peregrina) foi rapidamente posta de lado, assim que o bom senso levantou a voz. Apesar disso, não podemos menosprezar o facto de um critério destes ter sido considerado e até validado pela Direção-Geral de Saúde (!).

O que aqui está em causa é o direito a fazer uma escolha segura, porque a escolha é sempre feita! As mulheres que desejem abortar vão fazê-lo, seja de que forma for. Já o faziam muito antes de ser legal no nosso país e em muito maior escala. Mulheres de todos os estratos sociais faziam abortos, mas só quem tinha dinheiro podia assegurar as condições médicas necessárias. O que a despenalização trouxe foi segurança médica, gratuitidade e acompanhamento psicológico (se for necessário).

Ao contrário do que defendiam os opositores à despenalização, não houve uma banalização da IVG. Com o reforço do planeamento familiar e o aconselhamento posterior, os números tendem a descer. Nunca chegarão a zero, porque haverá sempre gravidezes indesejadas. Nenhum método contracetivo é infalível.

Em suma: a despenalização da IVG veio possibilitar que qualquer mulher, independentemente da sua condição financeira, possa interromper a gravidez sem colocar a sua vida em risco. É simples.

Isto tem de ser continuamente sublinhado, porque não é possível proibir o aborto. Isso é uma ilusão. O que é possível – e infelizmente cada vez mais provável, conforme vemos acontecer nos EUA - é voltar a sentar as mulheres no banco dos réus por fazerem uma escolha legítima.

Tomem a porra da vacina!

Vamos a ver se nos entendemos: recusar a vacina é, em 99,99999% dos casos, ESTÚPIDO, ARROGANTE e EGOÍSTA. Importa estabelecer bem isto antes de avançar com explicações e dissecar cada vocábulo desta minha irritação.

Nas últimas semanas os estímulos propícios a uma revirada de olhos são de tal forma abundantes que já quase nem consigo endireitar a vista.

Arrisco dizer que não há dia em que não oiça alguém afirmar que não quer a vacina, ou então que vai tomar “mas só porque...”, caso contrário não se sujeitavam a esta tão grande provação das suas vidas.

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Foto: Getty Images

Tenho para mim que esta situação já está a passar o limite do ridículo, pelo que passo a enumerar os motivos que justificam a minha tão ríspida adjetivação.

 

Motivos pelos quais recusar a vacina é ESTÚPIDO:

Primeiro: não há neste mundo nenhum tipo de medicamento, droga, vacina ou terapêutica completamente isenta de riscos. Até o vulgar Paracetamol pode provocar complicações na formação de coágulos de sangue (embora esse efeito secundário seja “muito raro” e se calcule que possa afetar uma em cada dez mil pessoas).

Só por isto já é ESTÚPIDO justificar a resistência às vacinas com o facto de conter "componentes perigosos". Mais perigosos são os químicos nos SG Ventil que tantas destas pessoas fumam às pazadas.

 

Segundo: Não há vacinas 100% eficazes (como aliás não há nada, nem o preservativo pessoal... sorry). Há sempre a hipótese de, estando vacinado, contrair Covid-19, mas as possibilidades de isso resultar em doença grave diminuem significativamente (cerca de três vezes, no caso de pessoas com mais de 80 anos e vacinadas com as duas doses, segundo estatísticas apresentadas pela DGS na reunião do Infarmed). O uso do argumento de possível reinfeção como justificação para evitar a vacina é, por isso, ESTÚPIDO.

 

Terceiro: Basta comparar os números da evolução de mortes e casos graves para perceber que a coisa melhorou bastante desde que uma significativa porção da população está vacinada. De acordo com estimativas de investigadores da Universidade do Porto, a vacina terá evitado cerca de 700 mortes entre maio e julho. São dados reunidos por quem faz carreira a analisar e estudar este tipo de coisas, todos os dias, durante anos. Assumir que estão todos a mentir é ESTÚPIDO. Nenhuma opinião proferida pelo Sr. Zé da Tasca pode ser mais sólida que esta, já que é ESTÚPIDO, assumir que se tem razão no que quer que seja sem ter lido uma linha sobre isso.

 

Quarto: A Covid-19 e a pandemia existem mesmo. Dizer o contrário é MUITO ESTÚPIDO, por isso nem me dou ao trabalho de justificar isto com evidências. Só não as vê quem não quer.

 

Motivos pelos quais recusar a vacina é ARROGANTE:

 Tal como a riqueza e o desenvolvimento, o acesso às vacinas no mundo é profundamente desigual.

Já em maio – esse mês longínquo em que ainda não tínhamos a percentagem de vacinados que temos hoje – a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos alertava que 80% das vacinas disponíveis tinham sido administradas nos ditos “países ricos”, enquanto apenas 1,3% tinham chegado aos países mais pobres.

Ainda ontem a Organização Mundial de Saúde alertou para estas desigualdades que continuam a agravar-se. Enquanto em Portugal se discute a possibilidade de administrar uma terceira dose, há países onde os médicos não tem sequer acesso a uma primeira. Vivendo num país onde a vacinação não só é abundante como é gratuita, recusá-la é, no mínimo, ARROGANTE.

 

Motivos pelos quais recusar a vacina é EGOÍSTA:

 A vacinação só funciona se for comunitária. A erradicação de uma doença depende de uma elevada percentagem de população vacinada, e mesmo aí é um processo que demora décadas. Não nos vacinamos apenas para nos protegermos a nós próprios, mas para travar a propagação da doença pela sociedade e, assim, vencer a pandemia.

Há tantos exemplos disto que é ridículo negá-lo. Graças às vacinas: 

-"A varíola foi erradicada no Mundo em 1978 (matava cerca de 5 milhões de pessoas por ano, hoje está quase esquecida);

-A Organização Mundial da Saúde declarou a região europeia livre de poliomielite em 2002. O objetivo é a erradicação desta doença no mundo;

-Em Portugal, a maioria das doenças alvo do Plano Nacional de Vacinação, estão em fase de pré- eliminação (difteria, sarampo, rubéola, rubéola congénita, tétano neonatal) ou estão controladas (tétano, doença grave por Neisseria meningitidis C, doença grave por Haemophilus influenzae b, tosse convulsa, hepatite B e papeira). 

-Na década anterior à introdução do Programa Nacional de Vacinação, quatro doenças – a tosse convulsa, a poliomielite, o tétano e a difteria provocaram um total de 40 175 casos de doença (declarados) e 5 271 mortes. Na década de 2000-2009, devido à vacinação, o número de casos por estas doenças diminuiu acentuadamente para 376 e o número de mortes para 27".

*dados publicados pela ARS Algarve

 

...E isto são apenas alguns exemplos. Há muitos mais casos em que as vacinas comprovadamente erradicaram doenças que outrora estiveram fora de controlo. Por tudo isto, não tomar a vacina é EGOÍSTA, pois impede que a sociedade possa dar a pandemia de Covid-19 como controlada.

 

Resumindo:

Não faz sentido continuar a tomar decisões que impactam a vida de todos de forma individualista, com base em palpites não fundamentados. Parem de ser ignorantes e teimosos! Duvidar de tudo e colocar em causa cada frase que dizem os especialistas não faz das pessoas mais respeitáveis. O cepticismo desenfreado não corresponde a um alto nível de inteligência. Eu sei que acham que sim, mas é mentira...

Tomem a porra da vacina!

Obrigado.

Memória colonial: Marcelino da Mata e Mamadou Ba

A polémica em torno de Marcelino da Mata mostra bem as divisões que persistem em Portugal.

Por ter sido o militar mais condecorado do Exército o seu funeral teve direito à presença de ilustres, mas, por ter levado a cabo inúmeros assassínios durante a missão na Guiné, a sua memória não está livre de contorvérsia.

Durante a Guerra do Ultramar as pretensões colonialistas de Portugal foram honradas por este homem que, cumprindo ordens, levou a cabo a missão que lhe propunham. Essa missão envolvia a invasão de territórios, o bombardeamento de povoações e a aniquilação de quem se opusesse. Por isso mesmo as condecorações de que tanto se fala são prévias à Revolução dos Cravos, e foram entregues durante um regime ditatorial que tinha na censura um dos seus pilares. 

No entanto, à luz da nossa consciência atual, as suas ações são altamente censuráveis, precisamente porque condenamos o contexto que as motivou: o colonialismo.

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O piloto Miguel Pessoa ao ser resgatado pelos Vingadores, o grupo de operações especiais chefiado por Marcelino da Mata, (que na foto empunha uma catana).

Foto do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

 

A própria vida de Marcelino da Mata reflete bem as diferenças de percepção adoptadas pelo país que ele escolheu defender: passou de militar condecorado a prisioneiro no PREC e acaba por morrer num contexto de aparente desvalorização. A notícia do seu falecimento passou virtualmente incólume e, note-se, só criou ruído quando os obituários geraram tantas críticas quanto elogios.


Neste momento, ainda não sabemos o que a Pátria, sempre ingrata, reservará à preservação da sua memória. Contudo, o seu nome e feitos há muito que fazem parte da História e da memória das nossas gentes.

José de Carvalho in Público

Veja-se a citação anterior, retirada de um artigo de opinião de José Carvalho no Público. Escolhi esta frase não por concordar com o mote do artigo (que exclama a glorificação do falecido militar) mas porque, talvez involuntariamente, reflete bem o que de facto de passa. Marcelino da Mata faz parte da nossa História, certo, mas a nossa concordância com essa mesma memória é o que influencia a corrente opinião sobre as suas ações. As diferentes interpretações do passado são, em última instância, o que dita as nossas posições no presente. Não consigo deixar de comparar esta polémica à da vandalização de estátuas, que aconteceu no ano passado. Também aí a razão da discórdia estava profundamente relacionada com a diferença de contextos e com a forma como esses contextos são encarados à luz da atualidade.

"É tempo de se falar sobre estas história de forma muito pragmática e analítica. O colonialismo foi algo hediondo e Marcelino da Mata é fruto disso e os comandos são fruto de um regime que massacrou pessoas durante mais de 500 anos".


"Não se pode olhar para a história de África dessa altura com os olhos de hoje. Para avaliar Marcelino da Mata é preciso olhar a história de Portugal na Guiné e inseri-lo nesse contexto."

Sofia Palma Rodrigues, doutoranda em Pós-Colonialismos, in DN

A condenação do colonialismo não é consensual. Isto é bastante claro. E fica ainda mais claro quando há partidos que reivindicam luto nacional após a morte de tão polémica figura - e não, não me refiro àquele que já sabemos que gosta muito de capitalizar ódios.

Também é claro que, mesmo passados tantos anos, a Guerra do Ultramar e os atos que se ali praticaram são alvo de um desconcerto tal que originam coisas tão absurdas como uma petição para deportar Mamadou Ba. O que está aqui a acontecer é que um enorme grupo de cidadãos quer que seja discutida no Parlamento a possibilidade de expulsar de Portugal alguém que disse uma coisa com a qual não concordam. Nas entrelinhas podemos ainda ler que consideram inadmissível criticar quem matou indiscriminadamente em defesa do colonialismo. 

É óbvio que esta polémica irá esfumar-se como aconteceu a tantas outras. O que está longe de desaparecer é a nostalgia ingénua que deturpa a realidade dos factos. O descontentamento crescente vai continuar a motivar indignações absurdas, especialmente porque o absurdo está cada vez mais normalizado.

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Sobre mim

Sofia Craveiro. Jornalista por obra do acaso. Leitora e cronista nas horas vagas.

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