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IN.SO.LEN.TE

Socialismo associal

George Bernard Shaw publicou, em 1884, o livro "Um Socialista Associal", a obra onde este artigo foi roubar a introdução. De forma sumária, a narrativa decorre sobre a vida de um jovem que abandona os privilégios concedidos pela sua classe social (priveligiada) para se dedicar inteiramente à causa do socialismo. Isto em teoria, pois as suas ações vão denunciando os paradoxos que se perpetuam entre o defender uma ideologia e o agir em desconformidade.

Quando iniciei a leitura deste livro percebi que seria pertinente para a época que vivemos, mas estava longe de pensar que surgiria um exemplo tão paradigmático no tempo presente.

Todos sabemos que a política é muito mais retórica do que ação, mas há casos demasiado flagrantes, como aquele em que um Governo socialista se opõe ao aumento de apoios sociais. Parece saído de uma novela satírica, mas é mesmo a realidade da nossa política atual.

Tendo em conta todas as dificuldades atravessadas por tantos trabalhadores neste país, a começar pelo ramo da cultura, passando pelos tantos precários, e chegando aos independentes esta postura do Governo dito "socialista" é, no minímo, revoltante.

Como se não bastasse o voto contra no Parlamento, o Governo ameaça recorrer ao Tribunal Constitucional para travar a aprovação dos decretos que retificam - "aumentar" é talvez uma palavra exagerada - apoios a trabalhadores.

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Foto: Tiago Petinga/Lusa


Mesmo sendo cenários distintos, é inevitável notar a contradição entre invocar a "lei-travão", para impedir o aumento de despesa pública, e permitir a concretização de um negócio de venda de barragens sem o devido pagamento de imposto de selo. Por um lado a lei é soberana, por outro, um mero asterisco facilmente controlável.

Se é tão grande o zelo pelo controlo da balança, porque é que os pesos são sempre retirados do mesmo lado? Faz sentido cortar em apoios quando não se assegura a cobrança de impostos que podem fornecer receita?

Além disso, nem sequer se compreende a razão do argumento, quando é sabido que o Orçamento de Estado foi elaborado de forma a salvaguardar a incerteza imposta pela pandemia, tendo prevista a possibilidade de o Ministro das Finanças alterar as contas:


O Governo fica autorizado, através do membro do Governo responsável pela área das finanças, a proceder a alterações orçamentais resultantes de operações não previstas no orçamento inicial destinadas ao financiamento de medidas excecionais adotadas pela República Portuguesa decorrentes da situação da pandemia da doença Covid-19 entre os diversos programas orçamentais, como ainda financiadas pela dotação centralizada no Ministério das Finanças para despesas relacionadas com as consequências da pandemia da doença COVID-19.

Art.8ª da Lei do Orçamento de Estado 2021

Neste caso parece seguro dizer que a democracia prevaleceu - pois os decretos foram aprovados por todos os outros partidos - mas é inevitável pensar nas consequências futuras que isto pode ter no panorama político. Se o desmembramento da "geringonça" já estava em curso, fica agora notório que o Governo pode vir a ter problemas sérios de continuidade.

 

Um botão de pânico??

Um botão de pânico?
É essa a resposta do Governo a um assassínio que ocorre no seio de instuição do Estado?

Um botão de pânico?
É a solução para calar as vozes que se levantam contra uma violência atroz?

Um botão de pânico?
É essa a ideia que promete deixar descansados os futuros cidadãos que fiquem retidos nas instalações do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras?

Um botão de pânico!?
É essa a proposta que revela que Governo está a tentar resolver alguma coisa, após 9 meses de inércia?

Um botão de pânico...
É isso que vai marcar a diferença entre Portugal e os regimes autoritários que desrespeitam o Estado de Direito? A integridade física? A liberdade? O escrutínio? 

Um botão de pânico!
É a solução que irá tornar aceitável que os nossos governantes se escondam atrás de comunicados vazios?

Um botão de pânico...

...é instalado para permitir denunciar comportamentos por parte do SEF que não deviam sequer existir. 

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Foto:DR

 

Não seria mais lógico apurar responsabilidades, dar a cara, e garantir que nunca mais esta situação irá acontecer? Esta medida, além de inútil - pois,  em caso de irregularidades cometidas pelo SEF o botão de pânico alerta... o próprio SEF! - deixa transparecer que o Governo admite a possibilidade de as "irregularidades" voltarem a acontecer, preferindo viver com essa possibildade do que agir de forma assertiva e reformular e substituir todos os que estiveram envolvidos naquela atroz violação de direitos humanos. 

Nem o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, nem o primeiro-ministro, António Costa, nem o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, nem a directora nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Cristina Gatões, contactaram alguma vez a família de Ihor Homenyuk, cidadão ucraniano que morreu no dia 12 de Março no centro do aeroporto em Lisboa, diz a família. 

Público, 8 de dezembro de 2020

Estamos a varrer para debaixo do tapete uma situação lamentável, fingindo que foi um caso isolado. O que aconteceu nas instalações do SEF não pode ser encarado com ligeireza. Ihor Homeniuk era um cidadão ucraniano, uma pessoa que foi violentada de forma absolutamente desumana e injustificada. Não nos esqueçamos de que o SEF tentou inicialmente comunicar o sucedido como "uma morte por epilepsia". Se o Instituto de Medicina Legal não tivesse relevado à Polícia Judiciária as lesões concerteza hediondas que Ihor tinha no corpo, esta morte teria passado despercebida. Não podemos, enquanto cidadãos, aceitar esta apatia governamental.

 “Fizemos uma chamada para o inspector, que nos disse que ele tinha tido um ataque epiléptico e que morreu antes de o INEM chegar. Não havia indícios de que alguma coisa estivesse errada.” 

Volodumyr Kamarchuk, Cônsul da Embaixada Ucraniana

Já todos sabemos que os inspetores responsáveis por este filme de terror estão em prisão de domiciliária, mas ainda nada foi dito acerca do resto das pessoas que foi conivente o encobrimento da situação. 9 meses e um puxão de orelhas de Bruxelas depois continuamos a assobiar para o lado, sem tomar medidas que efetivamente alterem e reformulem as práticas do SEF.

Até quando isto vai ser admissível?

Fora do círculo

Em Portugal existe um "fora" e um "dentro".

Há quem esteja "fora" dos círculos de poder que se cruzam e comunicam entre si, e quem esteja "dentro" dos mesmos. Nós, forasteiros deste país, vemos quem está "dentro" pela janela das televisões, rádios e jornais, divididos em categorias associadas à temática das notícias. Mesmo tendo consciência da diferença abismal entre media e realidade, tendemos a pensar que cada figura pública se insere numa gaveta condizente com a sua função: políticos dão-se com políticos, juízes dão-se com juízes, empresários com empresários. Acabamos por isso a formular teorias e a emitir opiniões tendo em conta a ideal delimitação das funções dentros dos seus meios. Mas de vez em quando surgem vislumbres da ilusão que são estas distâncias, normalmente sob a forma de acusações do Ministério Público, ou investigações jornalísticas.

Quando são revelados exemplos de promiscuidade entre instituições públicas e privadas, temos a sensação de que se está apenas a arranhar a superfície. E é aqui que ganhamos a consciência de estar "fora": fora dos círculos de poder, fora das esferas de influência, fora dos estatutos que usam o silêncio cúmplice como moeda de troca. 

A notícia do Expresso de que António Costa e Medina integravam a Comissão de Honra da candidatura de Luís Filipe Vieira à liderança do Benfica foi um desses momentos esclarecedores. Uma daquelas alturas em que se dilui a fronteira e percebemos que o que sabemos é uma gota e o que ignoramos um oceano. Não é que não soubessemos já disso, mas de repente o alarme soa que nem um despertador. Acordamos para a realidade. 

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Costa, Medina e Vieira na consagração de um título de campeão do Benfica. Foto: LUÍS BARRA/Expresso

De repende torna-se tudo tão óbvio que qualquer declaração dos intervenientes só vai piorar a situação. E piorou:

 "Não comento, não tem nada a ver com as funções que exerço"

António Costa

A cena (que não é inédita) é de tal forma lamentável que a dado momento damos por nós a perguntar como ninguém percebeu que ia dar merda. "Como é que Costa se enfia voluntariamente numa armadilha que ninguém lhe estendeu?"pergunta - e bem - Miguel Sousa Tavares.

De facto é difícil de perceber que o político que fez bandoletes com as bandeiras da estabilidade e do optimismo tenha agora caído neste imbróglio sem ninguém o ter empurrado. (off: aposto que o nosso cavaleiro andante contra a corrupção já esfrega as mãos com a lista de indignações que vai levar ao parlamento).

Motivos fora parte, fica particularmente delicioso observar a sucessão de acontecimentos:

1-É revelado de que Costa integra a Comissão de Honra;

2-Indignação pública;

3-Polémica;

5-É revelado que o Novo Banco socorreu empresa de Luís Filipe Vieira no Brasil 

4-Mais polémica;

3-Revelação de excertos das conversas entre Luís Filipe Vieira e o juiz Rui Rangel - arguidos da operação LEX -  pela TVI 

4-Anúncio de Vieira de que retira os titulares de cargos públicos da dita Comissão de Honra (horas antes da reunião do Primeiro-Ministro com o Presidente da República).

De sublinhar que os últimos dois pontos aconteceram com uma diferença de horas. Talvez por isso se torne cómico ver o próprio Vieira a tentar escusar-se de culpas alegando promuiscuidades de funções (informativas):

Vivemos tempos em que a justiça passou a ser feita no Facebook, nas redes sociais e nos media. Tempos em que os juízes foram substituídos por jornalistas e comentadores que, num registo de excessos, sem conhecimento dos factos, mas com a cumplicidade de quem os vai parcialmente alimentando com o único objetivo de contaminar a perceção pública, vão minando o espaço mediático. Tempos em os jornais preanunciam condenações e em que líderes partidários e políticos mais populistas, propositadamente, esquecem um dos princípios básicos em que se assenta o nosso Estado de direito. Tempos em que falta seriedade e rigor. Tempos em que, quando a justiça finalmente chega, já não há justiça. Tempos em que o bom-nome e a reputação das pessoas se perdem na avalancha mediática que atropela qualquer presunção de inocência.

Excerto do comunicado de Luís Filipe Vieira 

No fim de ler isto parece quase que devemos sentir-nos culpados de ter tido conhecimento da cena e feito críticas. É como se a informação devesse ser limitada às elites que conhecem a situação e por isso a "sabem interpretar". Shame on us!

 Ironias à parte, há uma questão que não consigo evitar colocar:

É verdade que toda esta situação é lamentável, mas não será melhor, enquanto forasteiros que somos, aproveitá-la para tirar as nossas ilações? Seria mesmo melhor nada disto ter acontecido, conforme apregoam os analistas? Ou é preferível ficar na memória para mais tarde recordar?

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Sobre mim

Sofia Craveiro. Jornalista por obra do acaso. Leitora e cronista nas horas vagas.

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