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IN.SO.LEN.TE

Desconfinar aos trambolhões

Está na hora de admitir que não estamos bem.

A luta contra a covid-19 correu razoavelmente enquanto estivemos fechados em casa, mas bastou libertar as amarras à capital para o comboio do desconfinamento descarrilar rapidamente.

Queremos reanimar a economia, recuperar o tão importante turismo - que caiu 97% em abril face a período homólogo do ano passado - e voltar à vida social como a conhecíamos, mas recusamo-nos a aceitar que a pandemia não acabou. Com isso só retardamos o processo que ansiamos dar por terminado.

Tenho tido a impressão de que todos nós (cidadãos e Governo) estamos relutantes em admitir o que se torna cada vez mais óbvio: surgem demasiados casos de covid-19 diariamente. Estamos a afundar-nos numa reputação de descontrolo que não nos favorece em nada a nível internacional, mas teimamos em assobiar para o lado como se tudo estivesse a correr dentro do previsto.

Perante o volume de casos de infeção que reportamos diariamente, vários países - como a Áustria, Bulgária, Chipre, Dinamarca, Eslováquia, Estónia, Grécia, Letónia, Lituânia e República Checa - fecham as fronteiras ou colocam restrições a quem vier de Portugal, fazendo-nos ficar a ver passar os navios da boa publicidade (que achamos que vamos recuperar com a final da Champions).

051bfc3d72149749ff23fdcf35ab4f25-783x450.jpgFoto: Miguel A. Lopes/Lusa

“A forma como vamos tirar o pé do acelerador vai determinar se vamos ter descontrolo ou não”

Esta frase, incluída numa peça do jornal Público, é de Pedro Simas, cientista do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (em Lisboa) e data de dez de junho. Menos de quinze dias depois parece uma profecia. 

De facto não tirámos o pé do acelerador da forma correta, por, ao bom jeito português, querermos empurrar o desconfinamento com a barriga. 

Depois de os membros do Governo e Presidente da República se dedicarem a almoçar fora e a fazer compras, não se cansam agora de insistir que os nossos alarmantes números de casos de infeção existem porque Portugal está no grupo de cinco países que mais testes realizaram (disse hoje Marcelo Rebelo de Sousa após a reunião no Infarmed). Apesar de os números não poderem ser analisados de forma isolada a verdade é que há mais motivos para o descalabro. Um deles é a falta de compreensão da demografia deste país.

As medidas anunciadas especificamente para a zona de Lisboa e Vale do Tejo são importantes mas pecam por tardias. Não podemos desconfinar o país ao mesmo ritmo, porque Portugal é um país de velocidades diferentes. 

Se a nossa assimetria demográfica foi um trunfo que serviu de travão à disseminação de covid-19 (veja-se o caso do Alentejo, cuja desertificação e envelhecimento foram cruciais para o baixo número de infeções e óbitos), será agora a nossa desgraça, por não ser devidamente tida em conta. Desconfinar a Área Metropolitana de Lisboa não é igual a desconfinar o Alentejo, o Algarve ou a Beira Interior, e por isso não deveria ter acontecido da mesma forma. Não chega retardar a abertura dos centros comerciais, se tudo o resto é retomado como se nada fosse.

As grandes diferenças nos índices de infeção por região permitem concluir desde já existirem evidências estatísticas que justifiquem medidas de desconfinamento diferenciadas regionalmente.
... disse Luís Valadares Tavares, Professor Catedrático do IST, em maio desde ano. Foi uma das várias vozes que alertou para a questão, mas o aviso caiu em saco roto.
 
O maior erro que aconteceu nesta fase de levantamento de restrições não foi a festa no Algarve nem o ajuntamento de Carvelos, (cujas irresponsabilidades não irei aqui comentar) mas sim a falta de um planeamento estratégico de desconfinamento que considerasse a especificidade de cada região. Esse foi o fator que influenciou tudo e que, irremediavelmente, irá prejudicar o resto do país. 
 
Depois de um bom começo claramente estamos a espalhar-nos ao comprido...
 
 

(Não) usar máscara é um ato político

O uso de máscara é contorverso desde o início da pandemia. A Direção-Geral de Saúde começou por desaconselhar a sua utilização generalizada, alegando que poderia levar a uma "falsa sensação de segurança", mas acabou por ceder às evidências e recomendá-la à população, como forma de prevenir o contágio de covid-19.

A partir de hoje o uso de máscaras de proteção individual passa mesmo a ser obrigatório em diversos espaços públicos em Portugal, constituindo uma das muitas medidas adoptadas pelo Governo para este início de desconfinamento.

Apesar disso, e tendo em conta que até aqui o uso de máscaras era facultativo (e continua a ser em muitos países), é curioso o significado que este "acessório" adquiriu, em particular junto das esferas do poder. Usar ou não usar máscara tornou-se uma forma de comunicação política não-verbal, que permite interpretar ideologias e tirar ilações. 

Some political analysts say image-conscious politicians may resist masks, even if they are warranted, for fear that the coverings might make them look pessimistic or nervous.

...diz o New York Times.

merlin_172010538_515ee93e-90db-47c9-aa28-4928b37a9Mike Pence, vice-presidente norte-americano, visitou uma clínica sem utilizar máscara /New York Times

O site Politico chega mesmo a comparar a utilização de máscaras com os dois espetros da política americana:

The mask has become the ultimate symbol of this new cultural and political divide. For progressives, masks have become a sign that you take the pandemic seriously and are willing to make a personal sacrifice to save lives. (...) On the right, where the mask is often seen as the symbol of a purported overreaction to the coronavirus, mask promotion is a target of ridicule (...).

A tese aqui descrita é que enquanto na vertente progressista usar máscara é um símbolo de responsabilidade e civismo, na ala conservadora esse ato é visto como um exagero face ao coronavírus, sendo a sua utilização ridicularizada. E de facto é isso que se observa, salvo raras excepções. 

Esta premissa, contudo, não se cinge à política americana, e, a meu ver, pode até ser extrapolada para outras vertentes.

A recusa em utilizar máscara parece simbolizar a negação da pandemia enquanto ameaça global, o que, numa visão mais profunda, se prende com a postura anti-sistema dos partidos populistas. Estes negam as evidências científicas e insistem em não acatar as recomendações dos especialistas, baseando as suas ações em (des)crenças pessoais (veja-se Bolsonaro e o seu "histórico de atleta" que o impede de ficar doente).

Seguir conselhos seria ceder ao conformismo social que tanto criticam e, por isso, descartam a utilização de máscara, mantendo uma postura de superioridade perante algo que é uma preocupação a nível global. É quase uma rebeldia reiterada, que prefere fechar os olhos às provas empíricas.

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Jair Bolsonaro. Foto: Adriano Machado

Além disso - e se quisermos entrar numa perpectiva mais profunda e semiótica deste assunto - o uso de máscara neste contexto, reflete a adoção de um comportamento massificado de obediência. Atua quase como um "silenciador", algo que nos tapa a boca, a fala, que nos torna indistinguíveis, inaudíveis e irreconhecíveis, e, portanto, conformistas apáticos. Basta analisar as declarações de Ferro Rodrigues sobre a possibilidade de utilizar máscara durante as comemorações do 25 abril, para perceber que é esse o simbolismo que está inerente (ainda que aqui, os motivos sejam bastante distintos).
 

 Assim, para políticos e/ou governantes que baseiam a sua ação na afirmação da personalidade e culto do "eu", não seria viável seguir uma lógica de responsabilidade.  Isso iria torná-los iguais aos outros. Todos os seus pressupostos se baseiam na ideia de nações idealizadas, nacionalismo exacerbado e objetivos supremos, ideias que não se compadecem com a perda de vidas. Neste contexto a pandemia é um contratempo, que deve apenas ser gerido para minimizar eventuais revoltas populares...

 

Irá este comportamento continuar a conquistar eleitores? 

 

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Sobre mim

Sofia Craveiro. Jornalista por obra do acaso. Leitora e cronista nas horas vagas.

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