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IN.SO.LEN.TE

Normalidade é uma palavra masculina

Há coisas que são tão "normais" que nem nos damos conta delas. São de tal forma corriqueiras e habituais que tendem a passar incólumes no nosso julgamento, mesmo estando profundamente erradas. Felizmente, somos por vezes chamados à atenção para a flagrante injustiça da dita "normalidade" e, daí em diante não conseguimos mais deixar de reparar nela. O invisível torna-se flagrante e aí a inércia transforma-se em cumplicidade.

presidente.jpgFoto: Screenshot da campanha de apelo ao voto da Comissão Nacional de Eleições


Ao ver o anúncio da Comissão Nacional de Eleições de apelo ao voto pensei inicialmente que não estava mal concebido: nota-se que há uma tentativa de incluir representações de vários espetros sociais, diferentes faixas etárias e até alguma (não tanta quanto deveria) diversidade dos cidadãos representados. Não sendo perfeito, não considerei o anúncio mau, pelo menos até tomar consciência que é profundamente injusto:


Num contexto destes de domínio absoluto de homens e de algum (tímido) progresso recente das mulheres, podíamos imaginar que a CNE ia ter muito cuidado nas mensagens escolhidas para comunicar com as eleitoras e os eleitores. Só que não. A CNE produziu uma campanha de apelo à participação eleitoral centrada na figura do Presidente macho. Eu sei que a língua portuguesa é difícil. Mas, caramba, presidente é uma das poucas palavras que não tem género. Não havia por aí uma criativa que criasse uma campanha sem masculinizar a palavra com um conveniente determinante?

Susana Peralta,  "A CNE quer um Presidente, mas eu quero uma Presidente" in jornal Público

 

É mesmo de lamentar que em pleno século XXI, com duas mulheres na corrida à Presidência da República, o discurso da CNE se refira sempre à eleição de "um Presidente de todos" (!). Podem argumentar que a campanha está formulada desta forma por "ser o normal", que "com certeza não haveria a intenção de excluir duas candidatas" (uma das quais repetente), mas a verdade é que devia haver outro cuidado nas mensagens transmitidas à população, especialmente quando se trata do elementar ato de votar.

Se os propósitos da democracia são a representatividade e a inclusão, como podemos ignorar esses mesmos conceitos numa campanha de combate à abstenção? É suposto eu, cidadã, sentir-me representada neste anúncio??

Conheço bem a conversa típica do "agora não se pode dizer nada", do "tudo o que se diz é descriminação" e a do "antigamente não havia estas indignações parvas com coisinhas de nada". O problema destas teses de balcão de bar é que elas desprezam que o primeiro passo para uma mudança é assumir que algo está mal. Assim, se nunca apontarmos o dedo a injustiças elas continuarão a acontecer. É assim com o racismo, é assim com a pobreza, é assim com igualdade de género, e com todos os problemas sociais que tendem a perpetuar-se sob a desculpa da "normalidade", do "hábito" ou ainda da "tradição".

Portugal tem feito um esforço positivo no sentido de melhorar a paridade no espectro político e governativo, mas ainda estamos longe de chegar à meta. O Índice de Igualdade de Género da UE deste ano revela que Portugal conseguiu aumentar significativamenta a paridade na última década (mais 7.6 pontos do que em 2010, atingindo agora uma classificação de 61.3 pontos em 100). Não é mau - é melhor do que já foi - mas ainda está 6.6 abaixo da média da UE.

As quotas não são a medida ideal mas são obviamente necessárias, pelo menos até que as mulheres na política sejam uma banalidade. Mas se o seu propósito é o aumento de cargos políticos e governativos desempenhados no feminino, o seu intuito devia ser protegido de eventuais faltas de bom senso.

No mesmo ano em que é eleita pela primeira vez uma Vice-Presidente nos Estados Unidos da América, são aplicadas multas a uma Câmara Municipal francesa (Paris) cujo executivo é composto maioritariamente por mulheres. Ou seja, numa ocasião fantástica para demonstrar a capacidade feminina de liderança, a oportunidade é esvaziada pelo pretexto de desrespeito de paridade! Really?

A lei é útil para incutir mudanças mas de nada serve enquanto o mais importante permanecer inalterado: as mentalidades. Muito continua por fazer no que respeita à igualdade de género. Enquanto o normal for desvalorizar e estigmatizar o trabalho, sucesso e liderança femininas não saíremos desta "velha normalidade" que é, acima de tudo, cultural.

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Sobre mim

Sofia Craveiro. Jornalista por obra do acaso. Leitora e cronista nas horas vagas.

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