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IN.SO.LEN.TE

Evangelização, preguiça moral e botas enlameadas - com Rui Zink

Há uns dias debrucei-me sobre a possibilidade de estarmos a tornarmo-nos neo-evangelizadores. Observando a postura fervorosa com que são defendidos alguns pontos de vista, deparo-me – física e digitalmente – com opiniões tão seguras e intransigentes que não revelam senão um completo sentido de autoridade auto-imposta.

É quase como se a discórdia fosse confundida com ingenuidade, no sentido em que se assume que quem não compreende/concorda com aquela perspectiva específica o fará por pura falta de entendimento - “é ingénuo, crédulo, não percebe nada do mundo”. Assim sendo, muitos dos iluminados tomam como missão a conversão dos outros à sua visão, fazendo de uma opinião um evangelho autêntico. Tudo o que seja dito em contrário não será mais do que blasfémia.

Parece-me que estes fenómenos de crítica gratuita são uma profunda manifestação de populismo, na vertente de cidadania. Não são, portanto, os políticos, são mesmo os cidadãos que padecem de falta de sentido crítico, especialmente no que respeita aos seus próprios julgamentos. Talvez por isso agora proliferem os evangelizadores "Pela Verdade", nas redes sociais...

Mas porque raio há pessoas que acreditam ter sempre razão? 

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Ilustração: Ryan Inzana, New York Post

Uma das respostas é porque todos temos um fascista dentro de nós, mais ou menos desenvolvido consoante a nossa vontade. E não sou eu a dizê-lo – que eu não lido bem com fascismos – mas sim Rui Zink.

O escritor lançou em setembro do ano passado o “Manual do Bom Fascista”, um livro que choca de frente com a flagrante falta de coerência dos evangelizadores de secretária (ou de balcão). A obra não só ironiza as contradições dos que se dizem saudosos de Salazar como é uma deliciosa lição  - aliás não uma, mas 99 – acerca da forma como o autoritarismo é frequentemente pregado aos sete ventos por todos nós, porque todos nós temos facilidade em desprezar a reflexão.

Falei com Rui Zink sobre esta questão, numa conversa descontraída que acabou por extrapolar para outras tantas questões fraturantes da humanidade, nomeadamente a facilitação, o narcisismo, e as botas enlameadas.

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“O culpar o outro é sempre uma facilitação. Eu diria mesmo que é uma infantilização.Nós estamos a infantilizar-nos quando caímos na culpa ao outro. Este ano, com a pandemia, a coisa piorou.”

Rui Zink

Concordei. É verdade que todos temos direito a opinar - e felizmente podemos fazê-lo livremente - mas o surgimento de grupos que se apoiam em teorias da conspiração para disseminar baboseiras sem base científica atingiu níveis históricos. Rui Zink diz que parte da explicação reside no medo e na reação que este nos provoca. A pergunta que coloquei foi algo do género: “como pode tanta gente acreditar em coisas tão desinformadas, apoiando grupos como os “Médicos pela Verdade?

“Eu penso que, acima de tudo, mais do que fascistas, ou estúpidos, ou tribalistas, são preguiçosos morais. Muitas vezes o lado secundário da preguiça é o narcisismo. O narcisismo parte de uma coisa  boa que é gostarmos de nós próprios, mas torna-se preguiçoso... quanto mais preguiçosa a pessoa, menos coloca dúvidas. Pensar cansa.” 

Rui Zink

De facto é muito mais fácil acreditar na mentira do que perder tempo a confirmar a verdade. O lamentável é que a canseira do pensar não está apenas ligada à falta de palato para identificar balelas, mas também acontece nas tentativas apressadas de citar ideias/nomes/autores/teses que não se conhece para validar um ponto de vista.

O hábito de utilizar pensadores de renome de forma descontextualizada é igualmente uma forma de “preguiça moral”. De facto não tem qualquer valor citar nomes sem compreender as ideias que lhes estão associadas. É parvo. Atirar citações ao acaso é tão útil como tapar o sol com a peneira: ao fim e ao cabo a pele acaba por se queimar e todos vão dar conta do escaldão.

"Podíamos todos tornar-nos melhores pessoas - e melhores evangelizadores se é isso que queremos ser - se batêssemos à porta, como fazem os mórmones ou as testemunhas de Jeová...o que acontece com as redes sociais agora é que, como não têm portas, entra-se pela casa adentro dos outros sem pedir autorização, muitas vezes só para agredir, para partir coisas. E entra-se com as botas enlameadas, à bruta..."

Rui Zink

Esquecemo-nos que quando algo é de todos carece do cuidado de cada um.  A entrada forçada no espaço alheio serve apenas para alastrar o rasto de sujidade. 

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Sobre mim

Sofia Craveiro. Jornalista por obra do acaso. Leitora e cronista nas horas vagas.

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