A 26 de setembro de 1960 aconteceu o primeiro debate presidencial em direto na TV nos EUA. Kennedy defrontava Nixon, e o momento foi simultaneamente transmitido em dois meios distintos, dando origem a diferentes avaliações da prestação dos candidatos. Quem escutou o debate na rádio atribuiu a "vitória" a Nixon, cujo discurso assertivo foi convincente. Já quem viu na TV decidiu a favor de Kennedy, que saiu beneficiado pela imagem e comportamento pensados e cuidados.
O que aconteceria, se, naquela altura, os candidatos presidenciais fossem Trump e Biden?
Inicialmente era notório um esforço de ambos para respeitar esta regra, mas à medida que o tempo avançou as interrupções recíprocas começaram a surgir (ainda que de forma menos vincada que da última vez).
O debate ficou marcado por acusações mútuas, que muitas vezes se sobrepunham às respostas necessárias. Apesar disso acho que foi mais ou menos possível para os espetadores perceber as posições (opostas) de cada um em relação a determinados assuntos: coronavírus, Coreia do Norte, Obamacare - que Biden chegou a afirmar que vai transformar em "Bidencare" - controlo de fronteiras, consumo de droga no país, racismo, subsidiação das indústrias petrolíferas, para nomear alguns. Talvez por isso não seja possível apontar um vencedor inequívoco do debate, pois ambos foram capazes de gerir as expetativas do eleitorado que lhes corresponde.
É verdade que o conteúdo do discurso foi mais elevado que o do primeiro debate, mas que dizer quanto à forma? Se ouvíssemos Trump e Biden na rádio, a nossa opinião seria diferente, tal como aconteceu no debate de 1960 entre Nixon e Kennedy? O meu palpite era que Trump saíria vencedor, mais que não seja pela confiança e assertividade que transmite.
Trump tem um "modo de falar que implica uma grande confiança no seu conhecimento em tantas áreas que é obviamente impossível", dizia há dias o jornal Público. O atual presidente transmite segurança nas suas afirmações, mesmo que estas sejam falsas, e é inegável o impacto que isso tem na percepção das suas palavras.
Esta é, por outro lado, a grande fraqueza de Biden. O candidato democrata tem notórias dificuldades em manter a coerência e o raciocínio, o que lhe faz perder credibilidade. A dado momento do debate, Biden, quanto tentava contrapor um argumento de Trump, disse mesmo: "In terms of this thing about... what was he talking about...? China!".
É um pormenor, mas tem grande importância na avaliação subjetiva e insconsciente que acabamos por fazer dele. Claramente ele perde o fio à meada durante alguns momentos, o que não pode acontecer quando se defronta um ego irredutível como o de Trump. Não é sensato desvalorizar este facto, pois estas questões - ainda que possam aparecer acessórias - acabam por ter um impacto significativo na percepção que a população tem dos candidatos.
"I'm not a tipical politician, that's why I got elected"
Donald Trump, durante o debate presidencial de 23 de outubro de 2020
O debate desta madrugada entre Donald Trump e Joe Biden deve preocupar-nos. O que devia ser uma discussão séria e esclarecedora teve a eloquência de um reality-show.
Já se esperava que o nível de argumentação de Trump ia ficar preso às aleatórias acusações vazias e absurdas, mas (também conforme esperado) Biden não esteve à altura. O candidato democrata transmite decência e sensatez, mas infelizmente falta-lhe assertividade no discurso. Não transmite segurança, o que é grave num líder.
Biden bem tentou focar-se no seu próprio raciocínio, ignorar Trump e dirigir-se aos eleitores, mas essa tarefa era demasiado hercúlea para a conseguir concretizar com eficácia. Devo dizer que passei a última madrugada a sofrer por ele, que visivelmente lutava contra a frustração de não conseguir emitir palavra. O democrata deixava transparecer demasiado esforço, o que afetou gravamente o apelo ao voto que tanto se esforçou por concretizar.
Apesar de tudo foram notórias as diferenças na postura dos dois candidatos: enquanto o atual Presidente dos Estados Unidos manteve o ar desafiador que o carateriza, sempre dirigido ao adversário, Biden olhava direto para as câmaras, tentando ignorar o presidente enquanto puxava a ferros a atenção do eleitorado. Infelizmente não me parece que tenha sido bem-sucedido. O ex-vice de Obama teve muitas oportunidades para "agarrar o touro pelos cornos", mas simplesmente não o fez: deixou passar levemente a tão importante revelação do New York Times que Trump foge ao fisco há décadas - uma questão que aliás foi colocada pelo moderador - deixou que os ataques baixassem o nível do seu discurso ("It's hard to get a word with this clown"), não explorou de forma firme o facto de Trump não condenar grupos supremacistas brancos (desculpando-se com a "radical left") e deixou muito a desejar no que toca a propostas concretas para o país. Quanto a Trump não houve grandes surpresas, mas devo dizer que esperava (ainda) pior. Manteve-se fiel ao seu registo e aposto que fez as delícias de quem se alimenta de azedume.
Mesmo perante este cenário, a maioria considera que foi Biden quem ganhou (público e analistas). Isto já era esperado tendo em conta que Biden já liderava as sondagens de antemão . Esse facto não é, contudo, garantia de nada pois Hilary estava sensivelmente na mesma situação há quatro anos.
Há ainda dois debates onde os candidatos se irão defrontar antes das eleições presidenciais, a 15 e 22 de outubro. Até lá só nos resta aguardar e ter esperança (muita esperança!) que sejam mais esclarecedores que este.
P.S.Não quero deixar de referir o tão útil fast-checking que o New York Times fez em direto. Ainda que os comentários dos editores fossem por vezes subjetivos, era extremamente relevante saber com exatidão as verdades, mentiras e imprecisões que ali estavam a ser proferidas por ambos sem que isso interferisse com o debate.
George Floyd foi a gota de água que fez transbordar os Estados Unidos da América.
O chocante caso de violência policial racista - que pode ser analisado ao detalhe nesta investigação do New York Times - mostra o assassínio de um cidadão afro-americano por um sádico polícia branco em pela luz do dia. O caso acendeu o rastilho da revolta social e será determinante para a reeleição de Trump. Manifestantes saíram à rua em defesa da justiça por Floyd, mas a escalada de violência tem sido de tal ordem que serve apenas como pretexto para mais repressão policial.
Minneapolis, na sexta-feira. Foto: CHANDAN KHANNA / AFP
Este era o grande trunfo que faltava para a reeleição de Trump: um país profundamente polarizado, que se divide entre injustiçados enraivecidos - que incendeiam as ruas e pilham lojas, e por isso tornam-se um alvo a abater - e a supostamente necessária "law and order" que Donald Trump agora capitaliza até à exaustão. É uma distração fantástica para a hecatombe pandémica com que o presidente não soube lidar (e cujas consequências sociais e económicas muito contribuíram para a atual revolta). Após ter derrapado estrondosamente na gestão da covid-19 Mr.President espera agora surgir como salvador da pátria branca, capaz de tranquilizar os extremistas que se afrontam com protestos dos "forasteiros" que tanto detestam.
Ao invés de apelar à pacificação Trump aviva o ódio e perpetua a continuidade do caos. Convém-lhe que as insurgências continuem, para que possa surgir nos debates eleitoriais com o argumento de que os manifestantes são selvagens e têm de controlados. As pessoas cujas lojas foram pilhadas, os bairros aterrorizados e familiares violentados nos protestos vão levá-lo à vitória. A escalada de violência vai agora servir de pretexto nacionalista e não poderá ter outro resultado que não um racismo ainda mais exacerbado.
Diz-se que os grandes líderes vêm-se nas crises, e esta crise em particular foi feita à medida a Trump. Daqui ele saírá fortalecido e apresentar-se-á como o messias - como aliás já está a fazer - cujas repressões serão decisivas para o país.